Esse texto é um ótimo referencial para se pensar sobre a exploração da Arte na Educação Infantil. Então, boa leitura!
Autora: Luciana Esmeralda Ostetto
Universidade Federal de Santa Catarina - Centro de Ciências da Educação.
Resumo:
Ao propor uma reflexão sobre possibilidades da arte na educação infantil, o texto chama a atenção
para a característica de um campo de conhecimento que não se define pela norma de pesquisar o desconhecido
ou mergulhar nele para testar novos materiais e formas. Antes, define-se por experimentar diferentes
elementos que, embora ainda não apropriados, integram o fazer artístico. Dessa maneira, como poderá a
educação infantil contemplar a arte em seu trabalho com as crianças? Para tanto, é essencial que o professor
aprenda a reparar no “ser poético” de cada criança, nas suas formas de conhecer, apropriar-se do mundo e
expressá-lo. Construir uma prática pedagógica que alargue as oportunidades de acesso à riqueza da produção
artístico-cultural, promovendo a aproximação das crianças aos diferentes códigos estéticos, ampliando seus
repertórios vivenciais e culturais. E mais, faz-se necessário encorajá-las à experimentação, abrindo espaço
para o contato, o manuseio, a exploração, a invenção, a produção com diferentes materiais. Nesse sentido,
então, poderá o professor seguir ajudando meninos e meninas a darem forma e expressão aos seus sonhos e
devaneios, às suas múltiplas linguagens. Enfim, a serem autores, criadores!
Palavras-chave: Educação infantil, Arte, Educação estética, Imaginação.
Crianças, Arte, Educação Infantil...
Carlos Drummond de Andrade, em crônica publicada em 1976, afirmava que as crianças
são poetas. Não é difícil concordarmos com sua afirmação, basta que passemos alguns
momentos perto de crianças para atestar isso. Elas são novidadeiras, inventam modas, criam
mundos e fundos; brincam com tudo que está a sua volta, mexem, pegam, puxam, experimentam,
montam e desmontam, acham graça das coisas; fantasiam, viajam na imaginação,
elaboram formas, buscam e inventam cores; constroem enredos e... dizem cada uma!
No aeroporto o menino perguntou:
- E se o avião tropicar num passarinho?
O pai ficou torto e não respondeu.
O menino perguntou de novo:
- E se o avião tropicar num passarinho triste?
A mãe teve ternuras e pensou:
Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia?
Será que os despropósitos não são mais carregados de poesia do que o bom
senso?
Ao sair do sufoco o pai refletiu:
Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças.
E ficou sendo. (Manoel de Barros, 1999, p. 7).
Crianças fazem poesia com a palavra, com os objetos, com o corpo inteiro. Elas pensam
metaforicamente e expressam seu conhecimento do mundo valendo-se das muitas linguagens
criadas e recriadas na cultura em que estão inseridas. As crianças são poetas, sim!
Mas, que triste, lembra-nos Drummond em sua crônica: “[...] a escola não repara em seu ser
poético, não o atende em sua capacidade de viver poeticamente o conhecimento e o mundo”
(ANDRADE, 1976, p. 593).
A poesia, nesse caso, pode ser entendida como todo o universo da arte, sinônimo de
tudo quanto é inteiro, envolvendo pensamento e sentimento, razão e emoção. Poesia é vida
pulsando, imaginação e sonho fazendo-se cores, formas, sons, gestos, movimentos (OSTETTO,
2007).
A partir de tal compreensão, vejamos algumas práticas comumente encaminhadas em
creches e pré-escolas: oferecer folhas brancas (tamanho A4) para as crianças desenharem,
revistas para recortarem ou rasgarem, massinha para modelarem, tinta para pintarem e, ao
final, guardar o que foi feito na pasta de trabalhinhos; ler histórias para depois fazer atividades;
ensaiar uma dancinha ou teatrinho, para apresentação aos pais; confeccionar lembrancinhas
para datas comemorativas.
Estaria a arte presente nessas práticas? Qual o sentido de tais atividades? Quem está
em evidência nas propostas enumeradas acima: o produto ou o produtor; a atividade ou aquele que a realiza? Elas possibilitam às crianças “[...] condições de expressar sua maneira de ver
e curtir a relação poética entre o ser e as coisas” (ANDRADE, 1976, p. 594), dando espaço
para o cultivo de seu ser poético?
Buscar respostas a essas questões pode ser o início de uma
conversa sobre os sentidos da arte na educação infantil.
Acolher o ser poético
Para a criança, a arte interessa enquanto processo vivido e marcado na experiência,
corpo inteiro, conforme Moreira (2002). Nessa mesma direção, a dinamarquesa Anna Marie
Holm afirma que:
Quando se trabalha com a primeira infância, arte não é algo que ocorra
isoladamente. Ela engloba: controle corporal, coordenação, equilíbrio, motricidade, sentir, ver, ouvir, pensar, falar, ter segurança. E ter confiança, para
que a criança possa se movimentar e experimentar. E que ela retorne ao
adulto, tenha contato e crie junto. O importante é ter um adulto por perto,
co-participando e não controlando. (HOLM, 2007, p.12).
Essa artista e educadora desenvolve oficinas de arte com crianças de diferentes idades,
e com ela podemos identificar pressupostos que nos ajudam a pensar nos significados e
nas implicações da presença da arte na Educação Infantil.
Do seu encontro com as crianças,
destaca-se uma visão da arte como um processo contínuo e cotidiano, que envolve pesquisa
(duvidar, fazer perguntas, buscar, experimentar, explorar materiais, ideias e possibilidades),
conquista de autoconfiança (a crença pessoal na capacidade de fazer e aprender, ensaiando
autoria), coragem de ir aonde não se conhece, lá onde o oculto do mistério se esconde.
Para
Holm:
As crianças deveriam aprender a pesquisar, a ter confiança em si mesmas
e a ter coragem de se pôr a trabalhar em coisas novas. (...) Aprendendo
que uma tarefa pode ter várias soluções, adquirimos força e coragem. As
crianças adquirem isso na oficina de arte. Eu lhes apresento um desafio,
que nunca tem uma resposta definida. (HOLM, 2004, p. 84).
Apresentar desafios para os quais não se espera uma única resposta é algo distinto de
oferecer uma atividade “para fazer assim”, para chegar naquilo que o professor determinou
que seria o produto final. Implica em considerar especificidades de um campo de conhecimento
que não se define pela norma, pois não há regras fixas no modo de produção da arte,
suas linguagens são territórios sem fronteiras.
Pesquisar, mergulhar no desconhecido para
testar novos materiais e formas, experimentar diferentes elementos ainda não apropriados,
integram o fazer artístico. É o que testemunha o artista contemporâneo Olafur Eliasson: "Eu encaro o meu processo artístico como um projeto de pesquisa. Atualmente,
os artistas têm liberdade para pesquisar coisas das quais não têm nenhum conhecimento.
É isso o que estou fazendo. E percebo que essa forma de trabalhar
– testando coisas, fazendo experiências – está aperfeiçoando meu trabalho, quer
eu faça exposições ou não. (apud HOLM, 2004, p. 83)".
A forma de conhecer dos artistas é inspiradora, pois eles veem o mundo com olhar
de espanto, buscam o novo, admitem o estranho, entregam-se à vertigem do desconhecido;
colocam-se em posição de escuta, de atenção às coisas, aos objetos, aos outros, cultivando o
abismo da dúvida, da ambiguidade.
De modo geral, no campo educacional, tomamos rumo diverso: caminhamos amparados
por certezas pedagógicas, um porto seguro das regras e modos de fazer, e então temos
medo do desconhecido, do que não podemos controlar, do campo do afeto, da fantasia e da
sensibilidade, por exemplo.
É evidente a dificuldade da escola (creches e pré-escolas também!)
em lidar com a arte, com a poética da vida – que pressupõe espaço para a imaginação,
a experimentação, a criação e, como parte do processo, espaço para a dúvida e para o erro.
Mas, a tranquilidade que pode nos trazer o domínio do já estabelecido (um modelo, um
manual, uma técnica) e a segurança que pode nos oferecer a rota conhecida (como aquela
pasta com moldes de “trabalhinhos” para passar para as crianças, ainda tão comum entre os
educadores!), caminha passo a passo com a impossibilidade da criação (OSTETTO, 2007).
A essa altura, é fundamental que façamos a pergunta: nossos roteiros educativos arriscam-
se por lugares e territórios que não conhecemos? Ou ficam presos aos limites da
“pasta”?
Educação estética: ampliar repertórios e
possibilidades de expressão
Nossa história é tramada nos tempos e espaços marcados pelas experiências compartilhadas
com nosso grupo de convívio, inclusive familiar, assim como pelas referências
culturais mais amplas. Pelas características de um tempo histórico, vamos elaborando sentidos
e significados sobre o mundo, apropriando-nos de modos de ser, pensar e sentir. Assim,
constituímos um repertório, um “[...] arquivo dinâmico de experiências reais e simbólicas”,
acervo pessoal de valores, concepções e sentimentos que de certa forma orientam a atribuição
de significados e sentidos ao vivido (MARTINS; PICOSQUE; GUERRA, 1998, p. 21).
Como seres sócio-históricos que somos, interagimos com a realidade que nos cerca,
somos afetados por relações, imagens, situações, acontecimentos, emoções. Então, nossos
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repertórios constituídos ao longo da vida, são acionados a cada encontro com o outro –
pessoas, lugares, paisagens, obras, objetos, conceitos. É com eles que vamos significando o
mundo, fazendo a leitura do que nos rodeia e nos acontece. Quanto maior o repertório, maior
a possibilidade de estabelecer diálogo com as “coisas do mundo”, com o mistério da vida.
Assim é para a arte como para todos os campos da vida humana.
No âmbito da Educação Infantil, falamos em ampliação dos repertórios vivenciais e
culturais das crianças como um dos objetivos a serem conquistados, assim como na necessidade
de um trabalho que considere as múltiplas linguagens da infância.
Porém, o que temos
presenciado é a simplificação e o empobrecimento da “arte” em uma versão escolarizada,
encerrada no fazer e visando a um produto, colocando em ação “o mesmo para todos”, “sigam
o modelo”, “é assim que se faz”.
Na Educação Infantil, frequentemente, a arte mostra-se
com a roupagem de um conteúdo a ser ensinado em determinados momentos ou um conjunto
de técnicas e instruções para o exercício de habilidades específicas (os “trabalhinhos” e as
“atividades artísticas” vão por esse caminho).
Arte, na educação, não se resume a momentos e atividades isolados. E, se estamos
pretendendo a educação do “ser poético”, implicado na totalidade do olhar, da escuta, do movimento,
que se expressa mobilizando todos os sentidos, será importante vermos tais ações
como educação estética (mais do que o ensino de arte) que se realiza no dia a dia.
Afirmamos,
dessa maneira, um princípio que deve atravessar todo o cotidiano, pois tem a ver com
atitude e, como disse a atelierista italiana, Vea Vecchi, a dimensão estética de uma proposta
educativa “[...] pressupõe um olhar que descobre, que admira e se emociona. É o contrário
da indiferença, da negligência e do conformismo” (VECCHI, 2006, p.16, tradução nossa). Trata-se, enfim, de um olhar que dá atenção ao mundo.
A presença da arte na educação infantil
será tanto mais importante, quanto puder contribuir para ampliar o olhar da criança
sobre o mundo, a natureza e a cultura, diversificando e enriquecendo suas experiências sensíveis
– estéticas, por isso, vitais.
Mas, para garantir oportunidades para a expressão viva da criança, precisamos considerar
que “Expressar não é responder a uma solicitação de alguém, mas mobilizar os sentidos
em torno de algo significativo, dando uma outra forma ao percebido e vivido” (CUNHA,
1999, p. 25), o que também é diferente de simplesmente “deixar fazer”, acreditando na chamada
“livre expressão”.
Para mobilizar os sentidos, é essencial o enriquecimento de experiências,
promovendo encontros com diferentes linguagens, alimentando a imaginação para
que meninos e meninas possam aventurar-se a ir além do habitual, à procura da própria voz,
da sua poesia. Nesse sentido, o professor deve se colocar como um interlocutor privilegiado, dando
suporte às crianças em sua criação.
Muitas vezes, com medo de ser impositivo, autoritário ou com receio de desconsiderar o acervo cultural das crianças, com o intuito de respeitar
“o gosto que trazem de casa”, o professor abre mão de seu papel que é, também, permitir
a circulação de diferentes significados, de socialização dos bens culturais produzidos pela
humanidade.
Respeitar o gosto do outro é uma aprendizagem, necessária e difícil, pois vivemos
em uma sociedade que nega as diferenças e impõe padrões, pela massificação de “produtos
culturais”.
Gosto não se discute? Podemos pensar sobre essa questão a partir de um belo e
enigmático filme francês: “O gosto dos outros” (2000). Seu enredo suscita a reflexão sobre
o universo das “preferências” e das “experiências estéticas” que vivem e se permitem viver
diferentes sujeitos, homens e mulheres. Na história de seus personagens podemos perceber,
com clareza, que “aprendemos a gostar” pela cultura, pela realidade vivida e experimentada.
Se, como diz o provérbio popular, o gosto não se discute, vamos compreender que o gosto
pode mudar, sim, de acordo com as interações a que um sujeito vier a ser exposto, pressupondo
trocas, diálogo, sensibilidade e afeto (OSTETTO, 2004). O gosto pode ser refinado.
Aprende-se a gostar, a ver e ouvir, assim como a combinar materiais, a inventar formas,
por isso um dos papéis do professor é abrir canais para o olhar e a escuta sensíveis,
disponibilizando repertórios (imagéticos, musicais, literários, cênicos, fílmicos), não apenas
para a realização de uma atividade, mas, inclusive, cuidando do visual das salas e dos demais
espaços da instituição. Como afirma Susana Vieira da Cunha (2005), as imagens disponibilizadas
nos espaços educativos são textos visuais, impregnados de significados que direcionam
e educam o olhar, oferecem referenciais para o repertório imagético e o pensamento das
crianças. Não são simples decoração...
O que está à disposição do olhar das crianças, o que aparece na sala? Desenhos elaborados
pelo professor, reproduções de obras de arte, fotografias, figuras da mídia, produção
das crianças, objetos de culturas diversas?
Ampliar o repertório das imagens e objetos também implica abastecer as
crianças de outros elementos produzidos em outros contextos e épocas,
como, por exemplo, as imagens da história da arte, fotografias e vídeos,
objetos artesanais produzidos por culturas diversas, brinquedos, adereços,
vestimentas, utensílios domésticos, etc. (CUNHA, 1999, p. 14).
Para contribuir com os processos expressivos, além de alargar as oportunidades de
acesso à riqueza da produção humana, promovendo a aproximação aos diferentes códigos
estéticos, é preciso também promover encontros e buscas, encorajando as crianças à experimentação.
Afinal, para construir, dar forma, inventar, compor, produzir com diferentes materiais é fundamental conhecer e conquistar certa intimidade com esses materiais.
Um
exemplo clássico: as crianças nunca haviam trabalhado com tinta, assim, na primeira vez,
que bagunça! – exclama o professor. Elas não desenhavam com o pincel, como previsto no
planejamento, apenas experimentavam as tintas, sobrepondo camadas e camadas até rasgar
o papel ou deixar tudo cinza; ou então, não pintavam o papel oferecido, mas a si mesmas. As
crianças estariam demonstrando, assim, que “não sabiam trabalhar com tintas...” O professor,
então, deixa de oferecer oportunidades de contato com esse tipo de material. Ora, como
poderão dominar esse código, a pintura com tinta e pincel, se não passarem pela constante
experimentação?
Da mesma forma com outras linguagens, seja a música ou a literatura: se não for disponibilizado
um repertório diversificado, com constância, permitindo o contato, chamando
ao encontro, à aproximação com aquela sonoridade muitas vezes estranha, àquele enredo ou
imagem incomum, à primeira vista, as crianças poderão negar a recepção, a fruição daqueles
materiais novos. Em outras oportunidades, é provável que nem mesmo solicitarão para ver,
ouvir, cantar ou manusear. Para que a escolha se faça, é imprescindível disponibilizar acervos
que, como dizíamos, ampliem as relações das crianças com o universo artístico-cultural
e, com isso, ampliem suas possibilidades de criação.
Alimentar o universo imaginário das crianças, provocando o desejo que faz mover
a busca, implica tempo de espera. Não se dá instantaneamente. O tempo linear, que passa
controlado pelo adulto, na rotina do trabalho educacional-pedagógico, em regra, não foi e
nem está pensado e planejado para acolher a arte, que obedece à espécie de tempo-espera. É
preciso tempo para deixar as coisas acontecerem. Sem isso, invariavelmente, haverá a imposição
de ritmos, estabelecendo a força da determinação cronológica, limitando experiências
(OSTETTO, 2006).
Quantas vezes na creche/pré-escola, o professor chega submetido ao tempo, seguindo
em direção contrária à calma que acolhe a imaginação, o sonho, a criação? Ah! O tempo
do tic-tac-tic-tac que passa apressado, rouba o momento do devaneio, da entrega, impede a
construção do olhar sensível.
O desafio para o educador está no exercício de um planejamento transformador do
tempo que corre e nos escraviza (em busca de um produto final), em um tempo suspenso,
pausado (entregue ao processo), que permite às crianças o pensar e fazer. A arte requer essa
outra qualidade de tempo. E uma outra qualidade de espaço também.
Além do espaço físico: educação do olhar
Pensemos no espaço não só em sua dimensão física – um lugar que permite ou dificulta
determinadas ações –, como também em seu aspecto simbólico – como ambiente que
comunica valores e concepções, definido por uma estética e visualidade que contribuem
decisivamente para a construção cultural do olhar e, portanto, da sensibilidade.
O espaço congrega uma linguagem muito potente, pois atua sobre todos os sentidos
de seus usuários, objetiva e subjetivamente. Visão, audição, tato, olfato e até paladar são
condicionados por uma dada configuração espacial (HOYUELOS, 2006).
Os espaços não
são simples arranjos físicos, mas também conceituais, constituem-se em campos semânticos
nos quais e com os quais aqueles que o habitam estabelecem determinados tipos de relações,
emoções, atitudes. Como qualquer outra linguagem, o espaço é um elemento constitutivo
do pensamento e, portanto, converte-se em ação pedagógica indireta à qual requer atenção.
As imagens pregadas nas paredes de creches e pré-escolas não são neutras, portam um
discurso, contam histórias e, tal qual um texto visual, “[...] denota leituras e modulam nossos
modos de ver”:
(...) as imagens que compõem os espaços educativos estão nos ensinando sobre
as crianças, como são, do que gostam e como devem ser educadas. Assim, muito
além de uma ‘inocente decoração de ambiente’, estas ambiências são construções
sócio-culturais-educativas que funcionam, também, como ‘máquinas de ensinar’.
(CUNHA, 2005, p. 135).
Nesse sentido, os repertórios visuais disponibilizados atuam na formação do gosto
e, de certo modo, funcionam como “modelos de ser e de agir”, principalmente porque
foram validados pela autoridade responsável, no caso, pelos educadores.
Um exemplo, ao
recorrerem a personagens midiáticos (Barbie, figuras da Disney, Garfield, Piu-piu, Mônica,
Cebolinha, Hello Kitty, a lista é grande!), instituem uma visualidade dominante reduzindo
as possibilidades de ampliação de repertórios imagéticos, uma vez que acompanham
o arquivo de imagens com as quais as crianças convivem cotidianamente também fora do
espaço escolar. A experiência de ver o já conhecido, repetidamente, formata e determina a
percepção e a apreciação sobre o mundo, “[...] servindo como referência, dizendo o que é ser
bonita/o, meiga/o, forte/fraco, querida/o, amiga/o ou zangado/a, ranzinza/o, mudo/a, inteligente”
(CUNHA, 2005, p.144).
Importante é assinalarmos que tais imagens não ocupam apenas o espaço físico, mas
também o imaginário e, como consequência, ocasionam empobrecimento das possibilidades
de produção das crianças, revelado na forma como tentam transferir para seus desenhos, pinturas, construções aqueles modelos, por meio da cópia ou deixando de desenhar porque
não “sabem fazer” daquela maneira, reproduzindo o modelo disponível...
Cuidar da estética dos espaços educativos é, portanto, matéria de primeira grandeza e
não simples decoração, dirigida pelo gosto de cada um.
Cabe aos educadores refletir sobre
seus “modos de ver” e seus “gostos” que direcionam suas escolhas sobre o que colocar ou
não nas paredes.
Outro aspecto a ser destacado é sobre certa uniformização nos modos de expor as produções
das crianças. Por que tanto painel com babados de papel crepom ao redor? Por que
folhas de desenhos e pinturas soltas, afixadas à parede? Por que não vemos tridimensionais,
pendurados no teto ou outros suportes que não o papel, a cartolina, o EVA?
Por outro lado, por que encher todas as paredes com uma “decoração” ou mesmo com
as produções das crianças? O excesso de estímulo visual acaba escondendo o que pretende
mostrar, causando o que chamamos de poluição visual. É preciso também permitir o “silêncio
da parede vazia”, como uma forma de convidar novos protagonistas a deixarem suas
marcas, para que novos discursos possam ser vistos/ouvidos por meio de renovadas imagens
(HOYUELOS, 2006, tradução nossa).
Temos muito que aprender no diálogo com a arte, com os artistas e as suas obras, com
os museus e espaços culturais. Você já reparou na diversidade de formas das exposições
realizadas nos espaços museais? Na multiplicidade de cenários que são constituídos para
expor diferentes obras? Por que a instituição educativa persiste em didatizar, em escolarizar
as formas de expressão, inclusive nos visuais de suas salas? Por que a pobreza da mesmice,
do simplificado, formatado, pedagogicamente arrumado?
E a sujeira ocasionada por uma sessão de arte? Cuidado para não sujar o chão! Quantas
vezes vocês já ouviram ou pronunciaram essa expressão? O que fazer diante da possível
(e inevitável) sujeira? Ora! Em geral, as crianças sentem imenso prazer em se melecar, se
“misturar” com os elementos e ingredientes que estão disponíveis ao seu redor ou que encontram
por aí, na natureza. Pedrinhas, caquinhos, barro, areia, uma poça de água da última
chuva, tudo é matéria de encantamento, quando podem se entregar inteiras à exploração.
Nessas horas, não têm medo de fazer sujeira e de sujar a si mesmas.
Parece óbvio: como experimentar, explorar materiais, construir, sem sujar, sem desarrumar,
sem sair do lugar? Sobretudo quando se trata de materiais úmidos, líquidos e
viscosos, como as tintas.
Parece que não há como escapar da fatídica advertência: Cuidado
para não sujar o chão! Não sujem a roupa! Como pontuou Sandra Richter (1999), para que
possam propor às crianças situações favoráveis à ação de pintar, é necessário que os educadores repensem suas concepções sobre sujeira (que muitas vezes estão condicionadas às
concepções e práticas da instituição...).
A experiência estética é, também, uma experiência de liberdade, de possibilidades de
escolha. Desde a localização/ocupação espacial para a realização de um projeto, até a seleção
de materiais, escolhas de cores, formas, tamanho de papéis etc. Quantas vezes disponibilizamos
às crianças diferentes tipos de papéis como base para suas produções gráfico-pictóricas?
Costumamos oferecer papéis em diferentes tamanhos para escolherem quais são mais adequados
ao que pretendem fazer/dizer/expressar? Quantas vezes lhes perguntamos quais são
suas preferências?
O desenho é linguagem? Então não precisa
de legenda...
Para compreender e, principalmente, respeitar o desenho infantil, não basta apenas
saber sobre as teorias do desenho, as fases de seu desenvolvimento ou significações psicológicas
sobre o grafismo infantil; o educador precisa saber da sua própria produção, da sua
expressão, da sua linguagem.
Onde está o seu desenho? Ainda o leva consigo ou foi deixado
no meio do caminho, entre a casa e a escola, entre a infância e a juventude?
Toda criança desenha, mas ao longo da vida, influenciada sobretudo pelos processos
escolares, vai abandonando sua produção e então chega à vida adulta sem saber qual é o seu
traço, qual é a sua marca. Vai perdendo a capacidade de designar, de afirmar-se produtora
de sentidos, sujeito criador de mundos, pois o desenho é uma espécie de projeto, uma “[...]
possibilidade de lançar-se para frente” (MOREIRA, 2002, p. 15).
Quem já não ouviu dizer que o desenho é linguagem, assim como o gesto e a fala?
Afirmar que desenho é linguagem, é compreendê-lo como produção carregada de significado.
Ao desenhar, a criança diz de si e do mundo que está conhecendo, descobrindo, desvendando:
“O desenho é a manifestação de uma necessidade vital da criança: agir sobre o
mundo que a cerca; intercambiar, comunicar” (DERDYK,1989, p. 51).
O desenvolvimento gráfico da criança não é linear. É repleto de idas e vindas, avanços
e recuos, porque é justamente um processo. Desenhando, vai deixando suas marcas no papel
ou em qualquer superfície disponível (as paredes, o chão) e, desta forma, a criança vai contando
sua história, passando por um intenso processo existencial, de transformações, em que
cognição e sentimento estão juntos, intimamente ligados. Segundo Derdyk:
A criança enquanto desenha canta, dança, conta histórias, teatraliza, imagina
ou até silencia... O ato de desenhar impulsiona outras manifestações, que acontecem juntas, numa unidade indissolúvel, possibilitando uma
grande caminhada pelo quintal do imaginário. (DERDYK, 1989, p.19).
Se o educador não compreende o desenho da criança como um processo de criação,
como linguagem que é, pode reforçar equívocos em sua prática, tais como a utilização do
desenho pronto para colorir (antigamente mimeografado, hoje, xerocado ou impresso) e da
cópia. Afinal, se “[...] a arte se define justamente pela diversidade, por propor algo que é
pessoal e único (...) temos que descartar toda atividade que tenha como ponto de partida a
uniformidade” (MOREIRA, 2002, p. 84).
Outro equívoco, muito comum na educação infantil, revela-se nas intervenções do
professor sobre o desenho da criança, seja escrevendo/nomeando com sua letra “o que” a
criança desenhou, seja dando aquela “ajeitadinha”, o “retoque final”, para a exposição, para
colocar na pasta, para mostrar aos pais... Equívoco, sim, pois na verdade temos aí a negação
do desenho como linguagem. Por quê? Ora, se o desenho é linguagem se constituindo que
expressa, comunica e diz de um processo vivido, deve valer por si mesmo e não pela “legenda”
que o professor coloca! A escrita sobreposta ao desenho, explicando o que é, corresponde
à linguagem e ao desejo do adulto, não das crianças; principalmente quando são pequeninas,
rabiscando, garatujando, experimentando o prazer do gesto, encantando-se com a mágica
das marcas produzidas com seu corpo no papel.
O adulto se esforça tremendamente para conseguir enxergar figuras nos
desenhos das crianças: ele tem dificuldades de permanecer “em suspensão”.
Sente uma necessidade imperiosa de nomear figuras, como se a figuração
fosse sinônimo de maturidade intelectual e habilidade motora.
(DERDIK, 1989, p. 141).
Parece que o adulto “não aguenta” o processo da criança, suas experimentações, seu
desordenamento, seus rabiscos... Em tudo, o adulto quer colocar ordem – a sua ordem –
nomear, enquadrar e, então, acaba por interferir indevidamente na produção das crianças.
Acaba por silenciar a voz da criança, restringindo seu processo de criação.
Se as crianças contam histórias ao desenhar, o adulto interessado por suas aventuras
poderá escrever (por exemplo, no verso do papel desenhado) a história do desenho, e não
palavras soltas, que buscam apenas identificar “as figuras”.
Se a criança assim o desejar e
permitir, esse momento pode ser uma oportunidade rica para o diálogo contribuindo, inclusive,
para a estruturação do discurso oral da criança. A pergunta, “qual é a história do seu
desenho?”, pode remeter o seu produtor a pensar sobre o processo e organizar o pensamento
para expressá-lo. Porém, que isso não se transforme em mais uma atividade didática! Como nos indica Edith Derdik (1989) há uma identidade entre a criança e seu desenho,
no qual produção e produtor se fundem. Ao desconsiderarmos o desenho em processo,
estaremos igualmente desconsiderando a criança, sua história, seus sentimentos, seus
sonhos, suas experiências. Mais do que um exercício, o desenho como produto é sua vida,
portanto, esta não pode ser desvalorizada.
Não é mesmo espantoso e radical mergulhar nessa
concepção? O que pareceria um simples desenho, um rabisco apenas, bolinhas esparsas,
indícios de esquemas, é toda uma vida! É preciso ter muito cuidado para não negarmos aos
meninos e meninas esse espaço vital de criação e construção de pensamento.
Pensemos, agora, na organização dos tempos e espaços no cotidiano educativo: desenha-
se quando sobra tempo, não pode sujar a sala, acabou o tempo, recolhe a produção, só
tem lápis de cor e giz de cera, folha A4 de papel branco... E, depois disso, pretende-se que
as crianças “saibam desenhar” assim, de uma hora para outra.
Para aprender a desenhar, é preciso desenhar muito, sempre! A constância no fazer é
que vai consolidar novas aquisições nas formas da produção gráfica. Com diferentes materiais,
em diferentes suportes, com tamanhos diversos. A cada material, tamanho de papel,
por exemplo, será acionada uma nova experiência, colocando novas perguntas, propostas de
exploração, busca de respostas e soluções para essa produção.
O professor como parceiro de aventuras
poéticas
No meio de toda essa história, estamos nós, adultos-professores, que também fomos
interditados na nossa ação de sonhar, de jogar e inventar mundos. Também fomos reprimidos
em nossas linguagens e possibilidades expressivas. E então, o que acontece? Não raro, temos
dificuldade em respeitar e valorizar o jogo das crianças, seus modos de criar e inventar modas,
seus jeitos de dizer e representar o real.
Resulta que, se não recuperarmos nossa dimensão inventiva e descobridora, dificilmente,
poderemos oferecer instrumentos que nutram e ampliem a sensibilidade, cognição e
afeto, no jogo metafórico que engendra os universos infantis.
Para seguirmos alimentando
processos criativos e criadores, é preciso reconquistar a beleza, retirando a repressão que a
impede de se manifestar.
O professor precisa alimentar sua expressão e conectar-se com ela, precisa reconquistar
o seu poder imaginativo, se pretende e deseja garantir a criação, a expressão das crianças.
A educação do educador é essencial e, no que diz respeito à arte, passa necessariamente pelo
reencontro do espaço lúdico dentro de si, pela redescoberta das suas linguagens (perdidas,
esquecidas, onde estão?), do seu modo de dizer e expressar o mundo.
Vejo o educador como essa pessoa-chave para mediar os caminhos da criança no mundo
simbólico da cultura, da arte. E nesse caminhar, na experiência compartilhada, ele vai
aprendendo a reparar em seu ser poético (OSTETTO, 2007). Seguindo de mãos dadas com
as crianças e comprometido com o resgate de seu próprio eu-criador, o professor amplia sua
possibilidade de compreendê-las, de reconhecer seus “despropósitos” e apoiar suas buscas e
escolhas. Converte-se, então, em parceiro privilegiado de novas e infinitas aventuras poéticas!
Referências
ALBANO MOREIRA, A. A. O espaço do desenho: a educação do educador. 9. ed. São Paulo: Loyola, 2002.
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