quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Sexualidade Infantil

                     Meninas de azul, meninos de rosa.

Rita de Biagio São Paulo/SP


Sexismo é tudo aquilo que limita cada pessoa em lidar com seu jeito de ser. Por que meninos têm de jogar bola e só meninas brincam de casinha? Esses preconceitos começam na infância ensinados pelos adultos. A escola pode ajudar a criança a se libertar dessas amarras e a desenvolver plenamente suas capacidades. Outra questão presente no cotidiano de creches e pré-escolas é a sexualidade infantil. Especialistas e educadores procuram desvendar esses dois temas.

Meninos vestem azul, são bagunceiros, objetivos e racionais, gostam das aulas de matemática e se dão melhor nos esportes. Meninas preferem o rosa, são organizadas, mais sensíveis, têm mais disciplina e se destacam em língua portuguesa. Quantas vezes você já não ouviu, disse ou pensou uma dessas frases? Esses conceitos, tão comuns em nosso cotidiano, expressam, na verdade, estereótipos sobre masculinidade e feminilidade. É o que chamamos de sexismo. São heranças culturais transmitidas pela sociedade, ou seja, pela família, pelos amigos, pelos professores. O que não quer dizer que sejam verdades, se entrarmos fundo no estudo da sexualidade humana. Pelo contrário.
De forma geral, segundo Yara Sayão, do Instituto de Psicologia Escolar da USP, a conseqüência da prática do sexismo é a restrição de possibilidades no campo social e individual, danosa. No campo mais individual, o resultado é o sofrimento psíquico, de não se sentir de acordo com os padrões estabelecidos, de se sentir fora, excluído, depreciado, diferente. "Aquele menino que não gosta de bater, não gosta de brincadeiras violentas, que não curte muito futebol começa a ser discriminado pelo grupo. Se pensarmos que a pertinência grupal é um fator fundamental de desenvolvimento de saúde mental, estar excluído ou ser diferente do grupo é fator de sofrimento intenso, seja pelo seu jeito de ser ou comportamento", analisa.
Jane Felipe, doutora em Educação e professora da área de Educação Infantil na Faculdade de Educação da UFRGS, diz que é preciso reconhecer que a escola não é uma instituição isolada da cultura e do seu tempo histórico. Dessa forma, a sexualidade, as desigualdades de gênero (ou o sexismo) ou quaisquer outros preconceitos estarão presentes também nas instituições escolares, desde a pré-escola e isso afeta o desenvolvimento infantil. "Ora, as crianças são educadas a
partir de determinadas convicções dos adultos em relação a elas e ao mundo. Se os adultos acham que meninos são ´naturalmente’ mais agitados e as meninas possuem uma ‘essência’ mais meiga e calma, as crianças que fugirem a essa regra serão olhadas com certo estranhamento."
Segundo ela, o conceito de gênero surgiu justamente para se contrapor a essa idéia de uma "essência" ou de uma "natureza" para explicar os comportamentos masculinos e femininos. Ou seja, gênero refere-se às expectativas que a sociedade tem em torno do ser homem ou mulher e que variam de cultura para cultura, de época para época. Ela explica: "Se educarmos as crianças a partir dos preconceitos de gênero, estaremos limitando as experiências de ambos. Por exemplo, dizer que meninos e homens não devem chorar os impede de desenvolver a sensibilidade e a expressão de seus sentimentos. Da mesma forma, ensinar às meninas que elas não têm competência para atividades voltadas para as áreas de raciocínio lógico-espacial é limitá-las em suas várias possibilidades de aprendizado. Infelizmente, os brinquedos oferecidos às crianças ainda se pautam por essa divisão radical: às meninas, ensina-se o mundo doméstico, a maternidade e o embelezamento. Aos meninos, o mundo das competições, da agressividade, do raciocínio lógico".
A educadora gaúcha confirma o despreparo dos adultos para lidar com as curiosidades infantis, especialmente em relação à sexualidade. "Fomos educados dentro da moral judaico-cristã, que associa sexo ao pecado. Também existe aqui a concepção de que as crianças devem ser preservadas de determinados assuntos, em função de sua suposta inocência. A sexualidade e o sexo são temas muito associados à moral, ao certo e errado e ao mundo privado, da intimidade das pessoas. No entanto, a sexualidade também é política, ela está na ordem do público, e os cursos de formação de professores(as), e outros afins, como a psicologia, ainda carecem de estudos mais aprofundados sobre essas questões."
Consequência: as crianças acabam reproduzindo na escola aquilo que ouvem ou vêem em relação às concepções de gênero e sexualidade. Elas aprendem desde cedo, por exemplo, que rosa é cor de menina e azul de menino. "Daí acontece, muitas vezes, do menino não querer pintar com lápis de cor rosa porque isso é coisa de menina. E se ele quer brincar na casinha com as bonecas ou com as panelinhas as próprias meninas se sentem incomodadas, ou mesmo as professoras já começam a ver o fato com certa preocupação", afirma Jane Felipe.
Essas situações, na opinião da educadora, mostram o quanto a construção das masculinidades e feminilidades se dá de forma relacional. "A masculinidade é construída pela negação e pela inferiorização de tudo aquilo que possa parecer feminino. Ou seja, os meninos, para se tornarem meninos, aprendem primeiro o que eles não devem ser (qualquer coisa ou comportamento que se pareça com atitudes ou gestos de meninas). E nós sabemos onde isso vai dar: a ideia de que homens valem mais que mulheres produz consequências ruins para a vida adulta, como baixa auto-estima, sobrecarga emocional, dificuldades afetivas e, muitas vezes, estão na origem da violência contra as mulheres."
Ela avalia, também, que existe um controle muito mais severo em relação à construção da masculinidade infantil. "Os meninos são muito mais vigiados por seus pais e professoras em relação à masculinidade e sexualidade do que as meninas. Minhas pesquisas têm mostrado muito isso", conta. "A própria equipe pedagógica da escola nem sempre tem preparo para orientar as professoras e as famílias, o que pode prejudicar as crianças, estigmatizando-as, como no caso em que meninos considerados ‘estranhos’ são encaminhados para especialistas."
Como enfrentar a situação? Os educadores são unânimes: com o diálogo e, principalmente, com a educação e a orientação sexual. Na opinião de Yara Sayão, a educação tem estado mais atenta a isso. Os documentos oficiais da educação, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (volumes 1, 2 e 3), colocam essa questão como sendo importante no currículo não só nas ideias, mas em todas as áreas. "Esse é um valor que pode estar invisível no meio dos conteúdos e a ideia é que ele se vá tornando visível e comece a ser pensado em todas as áreas do conhecimento", explica.
Beatriz Ferraz, diretora pedagógica da Escola de Educação Infantil Bacuri, de São Paulo, observa no dia-a-dia a curiosidade que as crianças têm quanto à sexualidade. Ela está presente nas brincadeiras, na atenção que voltam para algumas coisas e para o próprio corpo, e já começa no berço. Para ela, a base do sexismo é o não conseguir lidar com as diferenças de uma forma construtiva, no sentido de aprender com ela e não tentar eliminá-la. "Estabelecer padrões rígidos de comportamento revela também dificuldade ou incapacidade de lidar com o múltiplo, com o que é diferente e que na verdade talvez seja o que traga novidade, criatividade."
O sexismo, assim como outras formas de estereotipia de comportamento, concordam as especialistas, reduzem as possibilidades de criatividade, inventividade e ousadia. As pessoas afetadas vão se sentir amarradas ou presas a um padrão social, não poderão viver de acordo com suas possibilidades, com mais liberdade no campo individual e da produção artística, num convívio sem rótulos ou classificações. A radicalização desses preconceitos, segundo Sayão, gerou exemplos trágicos na história, como os extermínios.
Isso só já justifica a visibilidade dada ao assunto. Mas tem mais. Antonio Carlos Egyto, psicólogo e sociólogo, membro fundador do Grupo de Trabalho e Pesquisa em Orientação Sexual (GTPOS), avalia que a questão de gênero está presente na própria maneira de ensinar, "se considerarmos que 95% das professoras de 1ª a 4ª são mulheres e que na Educação Infantil esse número chega quase a 100%". E questiona: "O que as professoras consideram um bom aluno e como lidam com os meninos que não têm o modo de relação mais organizado e ordeiro?" Será que isso imprime certas características ao trabalho desenvolvido pela escola?
Pesquisas apontam, segundo Yara Sayão, que nas séries iniciais os meninos constituem a grande maioria dos que supostamente têm "problemas de aprendizagem" ou a serem encaminhados para clínicas psicológicas para tratamentos a partir de queixas escolares. "Há estudos que levantam como hipótese o fato de o modelo de ‘bom aluno’ se ajustar mais facilmente às meninas, na medida em que as professoras associam, mesmo sem perceber, o ser bom aluno com ser obediente, organizado e cuidadoso com o material e também não se opor ao que é proposto (características predominantemente atribuídas ao feminino, seu próprio gênero). Dessa forma, uma das hipóteses explicativas é a de que haja uma possível discriminação inconsciente das professoras ao comportamento ‘mais agressivo’ da maioria dos meninos. São estudos ainda iniciais, mas que merecem atenção e reflexão de nossa parte", frisa.
Aprendendo a sexualidade


O sexo está em casa, na rua, na novela, nos filmes, nas revistas. Existem muitas fontes de informação, mas nem sempre confiáveis, na opinião da psicóloga paulista. As escolas podem ser um espaço de informação e reflexão importante. "Diferentemente dos pais, a escola pode atuar de forma mais isenta, porque o professor está mais reservado de todos os afetos que envolvem a questão de maneira pessoal, onde entram em jogo valores familiares, diferenças, conflitos, ideias. É uma constelação de afetos que pode dificultar o trabalho dos pais, mesmo que eles queiram lidar com o assunto. A escola, com seus profissionais, está um pouco distante disso", enfatiza Yara.
Ela conta que esteve numa escola de Educação Infantil onde ensaiavam uma festa junina. As professoras combinaram com as crianças que elas dançariam de dois e que cada uma escolheria seu par. Entre as crianças de 4 a 6 anos, houve menina que escolheu outra menina para dançar e menino que escolheu outro menino e houve menina que escolheu menino e menino que escolheu menina. No dia da apresentação, alguns pais questionaram por que o filho estava dançando com outro menino. "Foi um momento importante e as educadoras souberam aproveitá-lo abordando o tema com os pais. Por que menino tem de dançar com menina? A questão trabalhada foi a de que o afeto pode circular livremente; não se trata ainda, nessa faixa etária, de imaginar que vão se tornar um casal."
Mesmo aquela professora mais conservadora pode propor atividades para as crianças. "Ela segue os materiais didáticos, tem reunião com coordenador pedagógico, com seus pares e pode ver ideias diferentes das suas. Ao mesmo tempo, mexe nos seus preconceitos, o que a torna mais atenta para olhar outras possibilidades", afirma a psicóloga.
Yara Sayão recorda-se de uma educadora que trabalhou com seus alunos de 7 anos uma história cujo conteúdo era o medo."Depois da leitura do livro, ela propôs, como lição de casa, que cada um escrevesse três coisas das quais tinha medo. A maioria dos meninos não fez a tarefa, porque disseram não ter medo de nada. E as meninas apareceram com seus textos nos quais contavam sobre medo de escuro, de barata, disso e daquilo. Assim, a professora começou a trabalhar por aí: por que será que os meninos têm menos medo? Durante a conversa, os meninos começaram a falar: ‘Eu não escrevi, mas eu tenho medo de ladrão’, ‘eu tenho medo de assalto’ e começaram a aparecer os medos. No fim da discussão, os meninos estavam menos duros, menos encouraçados, menos blindados, no sentido de não poder sentir medo." Segundo a psicóloga, essa é a principal questão para uma criança: ela não poder entrar em contato com a sua realidade, o preconceito faz com que ela perceba apenas o "como devo ser". E isso, muitas vezes, dificulta a constituição de uma criança que ainda não se conhece, ainda não tem ferramentas para se perceber integralmente como indivíduo. "Nessa idade nenhuma criança está pensando na escolha de um parceiro, a sua sexualidade ainda não está organizada dessa forma. E pode ser danoso a ela começar a ser taxada disso ou daquilo", enfatiza.
Outro exemplo: como lidar com a masturbação? "Todo professor já deparou com essa situação. Como trabalhar com isso e não culpar a criança, sem fazer com que ela se sinta fazendo algo errado, proibido, feio, pecaminoso?", comenta Egyto. Sayão indica uma saída: "É preciso ter uma intervenção que restrinja a atitude em relação ao contexto em que ela se encontra, é um espaço público, tem outras pessoas presentes, e o contato com o seu próprio corpo é algo da intimidade, da privacidade. Como explicar isso à criança? Às vezes, simplesmente dizendo ‘aqui não é lugar de fazer isso, aqui você não pode brincar disso’, a criança entende perfeitamente. Beatriz Ferraz enfrentou inúmeras vezes a questão e explica que a criança "tem de aprender que isso é do campo social, há circunstância onde isso pode ocorrer, dado que na nossa sociedade os valores são assim, na sociedade tribal não há essa restrição, mas na nossa há. Nossa tarefa como educadores é passar esses valores, de que a privacidade e a intimidade têm a ver com o exercício da sexualidade. Nossa intervenção deve ser o menos moralista e o mais precisa possível, no sentido da regra".
Jane Felipe acredita que para existir uma atuação qualificada com as crianças é preciso uma formação consistente do(a) profissional, que ultrapasse o campo da moral e da improvisação, o que implica profundidade teórica. "Em primeiro lugar, as famílias precisam ter claro que todo e qualquer interesse que a criança tenha é passível de ser trabalhado na escola, mesmo nas escolas infantis. Em segundo, entendo que o principal papel da instituição escolar é ampliar o conhecimento dos alunos e das alunas (e também das professoras e dos professores). Quando a professora percebe que está surgindo um grande interesse das crianças por algum tema, cabe a ela propor um projeto de estudo sobre o assunto. Em terceiro lugar, faz-se um levantamento com as crianças a fim de verificar o que elas desejam saber", orienta.
Cabe lembrar, segundo ela, que hoje as crianças têm um amplo acesso à informação, especialmente por meio dos veículos de comunicação de massa, como a TV. "Na nossa cultura, a questão do erotismo está presente em qualquer programação ou em qualquer horário. Portanto, as crianças vêem e ouvem coisas e querem falar, saber mais sobre isso. Elas chegam na escola comentando as cenas da novela, ou o que viram nos programas de humor e querem reproduzir com o grupo de colegas as cenas erotizadas que lhes causaram tanto interesse. E nós não podemos fingir que não ouvimos ou vimos, temos de agir", finaliza.
                   Fonte: Revista do professor de educação infantil - Criança n. 40 Rita de Biagio - São Paulo/SP páginas 33 a 37 - Setembro de 2005.


2 comentários:

  1. Oi Jaqueline! Também sou professora do Rio, mas trabalho aqui com EJA, em Caxias trabalho com Alfabetização, gostei muito do blog!
    Organizo um sobre alfabetização e nossa escola do rio tem um sobre o PEJA. Se puder, dê uma espiadinha e se gostar divulgue entre os seus!
    Com carinho, Amanda:

    www.leituradomundoedapalavra.blogspot.com
    www.carimbarpassaporte.blogspot.com

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  2. Uma abordagem precisa que propõe idéias muito interessantes. Mas como de costume em publicações desse gênero, parte do princípio que vivemos em um "mundo ideal".

    É claro que ir pela contramão é necessário para a evolução da sociedade, e cabe a cada um, principalmente profissionais educadores, multiplicar idéias que podem melhorar e muito o crescimento e amadurecimento pessoal como é o caso, mas a tarefa de implementar as idéias abordadas pode ser demasiadamente desgastante.

    Os preconceitos já arraigados no mundo atual, impõe barreiras que vão além da oposição de pais e outros profissionais. Como a sociedade cresce sempre em camadas, onde cada geração acaba estruturando suas posições sobre a obra da geração anterior (Ainda que tentando descontruí-la), mesmo profissionais que trabalham para o fim do sexismo podem acabar agindo em favor dele sem perceber.

    Sem críticas ao texto que está excelente, mas a sociedade ainda precisa evoluir muito para que todos possam, de fato, ser tratados de acordo com sua personalidade e seus interesses e não pelo gênero a que pertencem. O assunto está em pauta e este é o melhor momento para dar os primeiros passos em direção a esse objetivo. Eu espero que esses passos sejam dados, pelo bem das nossas crianças.

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